segunda-feira, maio 29, 2006

O Nome da Crise

A História um dia sentirá a necessidade de dar um nome a esta crise. O carácter decisivo dos anos que estamos a viver no panorama internacional e no desenvolvimento português vai impor essa distinção. O exercício de tentar adivinhar já esse nome pode ajudar-nos a compreendê-la um pouco melhor.O mais simples é, por vezes, o mais adequado. Assim, ela pode ser chamada apenas a "longa crise". Desde o início da modernização económica nacional em meados dos anos 1950 tivemos muitas perturbações, mas apenas cinco divergências significativas com a Europa. Esta que vivemos ainda está longe de ser a mais profunda, pois a queda de 1973 a 1976 (em que perdemos 5,3% face à média dos actuais Quinze) e de 1982 a 1984 (3,9%) foram mais violentas que a descida de 3,6% que acumulámos desde 2001. Mas, dado que o afastamento ainda não acabou e já leva mais de cinco anos, ela é sem dúvida a mais duradoura. De facto os outros dois ligeiros afastamentos, em 1968-69 (0,5%) e 1992-94 (2,1%), foram também bastante curtos. Assim, a actual paralisia, com mais do dobro do tempo de qualquer das crises anteriores, é a mais longa da nossa economia moderna.Aqueles que preferem ser rigorosos podem dar-lhe o título de "estagnação estrutural", pois a tendência de fundo do nosso de-senvolvimento nunca esteve tão mortiça. Em termos de crescimento do produto interno, a evolução de 2000-2005 tem a taxa média quinquenal mais baixa dos últimos 50 anos. Isto mostra apenas que estamos a viver algo muito diferente das recessões anteriores. Antes havia um soluço, por vezes bastante violento, mas do qual se recuperava com vigor. Agora adormecemos num entorpecimento latente. Os antigos navegantes conheciam bem a diferença entre o susto da tempestade e o marasmo da calmaria.Apesar disso, para os que gostem de abordagens coloridas, a crise podia ser chamada "a Assustadora", visto que já dois primeiro-ministros, Guterres e Barroso, fugiram para bem longe por causa dela. Mas talvez fosse melhor ela ficar conhecida como "a Japonesa". Salvas as enormes diferenças, existem bastantes traços comuns com a doença que atormentou a economia nipónica na década passada. Também aí se verificava um desequilíbrio financeiro, com forte endividamento, que embaraçava e tolhia o dinamismo económico. O diagnóstico era então claro e toda a gente sabia o que havia a fazer, mas ninguém parecia ter força para o realizar. Tal como no Japão, podem vir a ser precisos vários anos de modorra para expelir o veneno do sistema.Mas há um nome que ela não pode ter: o de "crise de austeridade". É que, embora se fale muito, não se vê austeridade em lado nenhum. Se a História futura se limitar a ler os jornais e discursos actuais, é possível que acredite que a origem das dificuldades está na redução da despesa pública. Mas se olhar para os números do Orçamento notará que "contenção da despesa" é coisa que não se vê: os gastos públicos só sobem.Muita gente deita as culpas da situação actual para a necessidade de poupanças no Estado, mas como se podem queixar de redução de verbas quando o sector público gasta hoje, em termos reais, mais 10% do que gastava quando a crise começou em 2000, mais 30% do que há dez anos e mais do dobro do que quando entrou na CEE? É precisamente a subida explosiva da despesa pública que, mais do que tudo, causa a referida estagnação estrutural. Claramente, não temos bolsa para suportar o Estado que temos.Mas o nome mais adequado, que vai directamente à causa decisiva, ao veneno no sistema, tem de ser "crise dos direitos adquiridos". O que se passa, simplesmente, é que o Portugal libertado de Abril, o "bom aluno europeu" cujo dinamismo espantou os parceiros, se deixou afogar numa enxurrada de "justas reinvindicações", "conquistas inalienáveis", "mínimos obrigatórios".Largos sectores, protegidos da concorrência externa pelo chapéu orçamental, definem os seus ganhos, não em referência ao que produzem ou dão ao País, mas por apelo a regras abstractas e princípios teóricos. Sabem todos os direitos que lhes cabem num país desenvolvido, mas ignoram o que lhes é exigido nesse mesmo país desenvolvido.A não ser que se lhe queira chamar a "crise delirante". Quando os ministros se atropelam a apresentar excelentes ideias para gastar mais dinheiro a resolvê-la; quando um distinto sindicalista diz impunemente que não há funcionários públicos a mais, é porque deve estar tudo doido!